sábado, 30 de junho de 2007

inquietude



não sei se te sinto
se me sinto
se o que sinto
é o calor da tua mão
na minha
ou se me ruborizo
pela mera suposição
de sentir-te
no fundo dos
meus sentidos

sei que fico aqui
encostada à minha face
a sentir o núcleo meigo
o halo magnético
a foice do teu olhar
ardentemente cego
a mondar a luz do meu
à beira de um beijo
entre lábios e fundas raízes
presas ao desejo

sei bem que
não conheço as pedras
do teu caminho
em quantas celas
te encerras nem sei
se outras queres
mais belas

mas algo agudo em ti
profundamente fende
as muralhas e me
harpeja o corpo
em sustenidos ternos

como ondas de prazer
no limiar
dos meus dedos

a noite vem carregada
de ramos trémulos
que tu do fundo do teu
silêncio agitas sem saberes
na pele interdita das palavras
quero-te como uma faca
a dissecar as sílabas
dos meus seios


a noite alonga-se
a lua assiste e nada grita
em sonhos sonharei
que a realidade recolhe
como a sombra sob o sol
para fresca gruta
em sonhos dedilho este Verão
que te procrio
como uma guitarra semeada
no fundo do labirinto
dou asas aos sentidos

e em sonhos vivo...




a sombra de amar








.


passa ao largo
um vento ácido
uma rosa descrente
que enegrece
os minutos da viagem
quando passo

detém-se num seio
que não é meu
dele só me chega a
nítida aragem

reconheço a vida
e a morte como os deuses
do acaso - resta-nos
apenas o amor,
a única opção que
nos é dada
o derradeiro passo

sabendo-me essência
de algo que foi depositado
nos meus genes,
devolvo-me ao amor
que me liberta
e protege,

mesmo que o amor
seja a sombra de amar
e o amado a prece
.

saltos altos


sente o que dispo na tarde
sem sequer deixar
um gesto atrás das mãos
como passo e empresto o corpo
ao ritmo que roça o dia

sente a dança como uma onda
uma incursão
na areia húmida do prazer
que me trazes

soltos os passos agudos
resumem rios
entre as minhas pernas
goteja a lenta eternidade
em saltos altos

danço no lume de ser mulher
deixo a música que me sacie
o seio e a saia ondule o desejo
que me inunde a suave melodia
dos meus passos no asfalto

renda negra na alvenaria da pele
rendição da muralha
que nos veda a tarde
rendição minha
nos sapatos de assalto
ao sonho que tenho alto
Julho no olhar caminha até
ao fundo das emoções
de um Verão esperado...

entardecer no mar


Ontem fui deixar-me anoitecer frente ao mar, no maior espreguiçar da tarde que já tive ocasião de presenciar. Eu lenta, sumida numa cadeira contemplativa, eu a desocupar o meu espaço de toda e qualquer latitude, a não ser o desaguar do dia na tépida zona da penumbra. E se foi demorada a descida! O sol persistia em adiar a queda, às vezes o sol requer do dia o tempo bastante para esperar a lua e resiste, resiste, o sol a limar a longitude da atmosfera, eu ébria de luz e também de ti na espera que o mar tomasse o teu azul.
.
Era o mar amarrado na baía, um mar doce e salgado ainda rio, eu presa ao lume prateado e atrás de mim um sopé coberto de flores e árvores antigas. Em queda, Palacetes do tempo em que as dinastias vinham a banhos ao Monte Estoril. Muitas palmeiras e um vento que começou a agitar o mundo, um vento de memórias e presságios, o vento que sempre levo comigo, quando te busco no mar alto.
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Havia uma regata a chegar, tantos barcos a abraçar o areal, a praia murada, salpicada de barcos, já pousados e prontos para a próxima etapa. Gostava de ser um deles e saber que o meu destino era amanhecer no mar e entardecer no areal com outros barcos. Uma profusão alegre de liberdade guardada no espaço limitado de um barco. Gente que se fará à vela mar adentro, esperando que o refresso tarde. A terra prende com lianas e raízes de um selva poluta. O mar leva quem sonha, e lava a pele, purifica o sangue que navega por cima de todas as erosões. O mar leva-me e eu vou.
.
De repente a tarde cede e a lua surge como um novelo de bruma inexplícita no horizonte, no fundo quase invisível do forte da barra. Gaivotas distraídas buscam as vitualhas do dia, restos que ficaram da invasão dos banhistas. Alheias às coordenadas do tempo e porém atentas ao desfilar da luz, para onde vão as gaivotas pronoitar os sonhos? Não alcanço rochedos com o olhar, suponho que as gaivotas saibam os seus lugares secretos para se esconderem da noite. Que mos contassem, na necessidade imperiosa de me esconder eu mesma de tudo que me resta.
.
As gaivotas presas ao alimento último do dia e eu entre o sol e a lua, recordo outra tarde antiga, em que sem te saber um nome e uma cor, já te sabia algures no limite das minhas paixões. O simbolismo veio-me óbvio, a maldição dos astros solitários no céu, o lampejo de luz que se oferecem sumariamente, intemporalmente num tempo restrito. Ela banha-se nos seus últimos raios, ele parece refulgir mais ao vê-la. Não escurece rapidamente, fica uma claridade húmida a pairar sobre a baía.
.
A própria noite hesita em mergulhar em negrume o raro sortilégio. Os raios de sol ficam esparsos na atmosfera a iluminar a face redonda e pura da senhora dos céus. Flores pela encosta e palacetes que guardam os segredos que sinto ter vivido em nome de todas as mulheres que morreram devagarinho na baía. Avivam-se os contornos do círculo agora claramente a face da saudade. Conto os destinos idos na contemplação da sua eternidade, enganosa lua que és de todos os amantes e todos colhes na foice da tua impermanência. Se tivesse mãos eternas e expansíveis teria sido o momento de reter longamente as tuas, como se retivesse o marulhar das ondas e da vida. Nesse momento senti-te no cume magnífico que une na mesma cor o mar e o céu. Entre o poente e o nascente, cabia o mar imenso do teu olhar.
Bom Sábado!

crónica da madrugada



"A madrugada é uma ave revestida de luar", começava assim o verso pueril, nascido no limbo do sono e da vigília. Não durmo, entregue à teimosia dos teus olhos, e na escuridão imagino o poema, sem o escrever. "A madrugada é uma asa fria que me prende ao fundo da tua ausência". Levanto-me, esta frase ancorou-me à vigília inadvertidamente. Afinal sempre escrevo o poema.

Abro a presiana e a moldura do quarto recebe em cheio a lua azul alta no céu, e descubro a razão do meu poema. Só não descubro o meu poema no gelo das minhas mãos. Oculto-me quando ela se desoculta, oculto-me por não te ver. Remexo a terra deste jardim que te plantei à beira do quarto. É um lugar agora silenciosamente branco, talvez tapado com panos, como a palavra, remexo a terra e arranco pela raiz tanto poema envenenado, tanto bolbo que não cresceu, tanta flor que nenhuma mão colheu para ir morrer numa jarra qualquer ou na raiva das mãos.

O jardim exala um perfume de lugar abandonado, as flores mantêm-se a poder de laca, nenhum riso ecoa pelas frestas dos caules, dir-se-ia um jardim cerrado e triste. E no entanto, quantas emoções bailam com as palavras, quantas borboletas álacres pelas manhãs, quantas crinas cavalgam as marés, cada flor rasgada na pele pelas voltas do amor... Não, não é um jardim triste, talvez suspenso, como os jardins de Barcelona, ou tapado com os panos brancos das casas fechadas que viveram grandes dramas e preferiram a penumbra doravante...
O quarto emudece com o estrago de pólen no mel esquartejado das palavras. Pequei por palavras que quis tocassem a tua pele. Pequei na tua pele, pequei na pele das palavras e teus fiz os meus pecados. Confesso que pouco mais tenho a despir de ti, depois da pele e do néctar todo que verti. Compomos o amor em diferentes pautas. A minha requer mãos que a rasguem, a amarfanhem, reajam, estalem na pele, libertem incontidas notas de marés e rugidos de um marmoto. Paixão liquida. A tua pauta toca só para ti uma música que compões da superfície das coisas, uma sinfonia rasante de múltiplas vozes, não tuas, de outras tantas vozes iguais à minha.

Não é por isso que deixa de ser madrugada no nosso quarto à beira de um jardim de papel. Pela janela entra uma lua desmesurada e o impulso nocturno da tua pele. Sonho-te porque não me resta mais do que sonhar-te. Planto-te e arranco-te, para que me sangres em seiva ou sangue umas palavras de amor. Mendigo-as de todas as formas que sei, com riso, com loucura, com altivez, com brusquidão, com a mais funda alquimia do meu corpo e da palavra, no fundo de todos os mistérios vou mendigar a tua palavra vestida de sol, terra, árvore, lume, lua, lava, lírio...

Mas reconheço que somos a essência de amar sem cor nem volume, e por isso, por que me falarias com o coração na voz, já que não me falas com a voz no coração? Arrepia-me pensar que fui eu que te fiz assim na loucura dos meus versos. Alongei-me sobre ti, sobre a imagem que do amor te tornaste, até te personificar nele. És o execsso da minha alma, um fervor avulso que coabita com o lume. Cá dentro. Fora de mim és quem fores. Mas não és tu.

E agora, de mãos vazias, atrevo-me a querer-te em palavras, sabendo embora que o verbo não te habita em meu favor, nem as sombras te chamam para o lugar das minhas tílias. O quarto não conhece a tua voz, mas imagina-a macia como pétala fresca, uma voz de ave encantatória, roçando o ouvido no registo embriagado da memória. Gostava de ouvir a tua voz, para que as paredes do quarto a gravassem num eco demorado, a subtrair o peso do silêncio. Gostava. Que a noite viesse e me levasse docemente, que o quarto descobrisse os móveis e as estantes, que os poemas flutuassem como pó e as tuas mãos se enternecessem comigo, por um instante. Então todo o luar do teu gesto seria bastante. Para que tu pudesses ser realmente tu além de mim.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

lugares das trevas


mãos fantasmas me lavam como rosas
meu corpo em lua
consente o fogo
em que me gozas
a asa rubra de uma pluma
a crina solta
a lágrima aflita
busca o beijo onde a maldição
se conjura e multiplica

perguntas, lugares das trevas,
de onde vem a vaga
a húmida serpente?

sim, admito o teu poder
uma mão de ferro que me fere
e funda sob as tuas mãos ocultas
a tua mão rasa a pele e rasga o selo
noutro mundo ancorada
a nota aguda o claro desejo

admito a minha força
na mancha azul da penumbra
eu me distendo e estendo
na contensão do risco
que quero lento e agudo
pelas unhas

lavras as razões do corpo
no meu ventre cravejado de doçura
eu solto a pauta
acendo um candelabro
no silÊncio do teu corpo

e as duas vontades
juntas rasgam fundo

sim, admito
não te anuncias pelo corpo
o teu lugar não é do mundo
as catacumbas do presente
vazias vomitam morcegos
o teu lugar é o passado a cicatriz antiga
a renda empunhada
o entardecer obscuro da pele
que absorvo no sangue puro mel
sim, existes,
sente o grito
em que me clamas
tua serva concubina
sou a mesma vontade que te
prende na penumbra
a palavra e a ilusão
que buscas

sim, partimos juntos
e tu perguntas,
lugares das trevas
de onde vem a vaga
a húmida serpente
a morte que nos reúne
e nos renasce sempre?

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Antigamente nós


Antigamente sob as tílias
Namorados pensamentos vinham
Nas cálidas manhãs de Junho
Todo o mistério eras tu
E o mistério era o sonho

Antigamente já vai tão longe
E ainda hoje nos reúne sob as tílias
A mesma loura ventania
De querermos as bocas unidas
Os corpos florais entreabertos

O mundo suspenso na entrega
Nem uma palavra na onda que nos leva
O murmúrio ouve-se de outras fontes
A pele nua lentamente nos navega

Com hastes profundamente tensas
Morremos lado a lado imersos
Em jarras feridas filiformes
A água dentro plácida revolvemos
Com a força dos rios, lagos e oceanos


http://www.youtube.com/watch?v=IbRkees48i8
I'm in Heven - Eric Cletpton

o mel e o desejo



regresso ao fluxo das tuas mãos
como regresso ao berço da memória
desertos sopram de entremeio
entre as tuas mãos e o meu colo

tantos caminhos te percorrem o corpo
às vezes dentro, outras fora do mundo
cavalos cruzam os teus flancos pelo meio
há uma multidão na escadaria do teu peito

são escadas sem degraus os teus anseios
reúnes na tua mão o trigo e o centeio
eu subo às tuas mãos pelo alimento
e como e bebo o mel e o desejo

rosas frequentes


esta noite não posso apagar a noite
não sem te falar na noite crescente
uma noite labiríntica entre tochas
nos limites obscuros do meu corpo
as minhas mãos movem-se aleivosas
por entre a penumbra a noite toca-me
e todas as luzes que acendemos
ardem em mim numerosas

como a lua desespera alta no céu
também aqui na terra eu desespero
sou um fragmento perdido no deserto
talvez uma bolha de ar vazia neste verso
também eu esta noite te procuro
busco uma fenda no espaço do tempo
um buraco na zona mais misteriosa
do teu mundo e movo-me dentro
e todas as luzes que acendemos
ardem em mim numerosas

tudo me confunde quando entro
tensamente o teu sangue em movimento
artérias alteradas marcam o compasso
o fino recorte do desejo

tudo me confunde quando vejo os teus olhos
lugares sem vida na frontaria do teu rosto
semearam-se longe, os teus olhos foram-se
partiram para as colheitas de Agosto
só o teu corpo me esclarece a viagem que
leva dentro

porque te desejo
esta noite, não posso fechar a porta
do nosso mundo, tu sorris, eu acrescento-me
fica aberta ao vendaval que desencadeias
tu adentras-te, eu intormeto-me
contorcemo-nos como folhas ao vento
a dor vai, a dor vem-te

e a noite é um espaço negro
a noite cresce no corpo e acaba cedo
mas fende o férvido ventre
e todas as luzes que acendemos
ardem em mim como rosas frequentes


Boa noite, querido!

segunda-feira, 25 de junho de 2007

o meu país


.
as searas lisas penteadas
barcas soltas pelo monte
as brancas casas
e piamente
uma pêga pega o pente
e rasga a planície em mágoa
um pio saído do ventre
que o horizonte mata
no meu país de altas águias
papoilas pintam lágrimas
mas ninguém vem colhê-las
as papoilas não são searas
e só as searas alimentam
no meu país as aves voam
penteadas pelo vento
cabelos soltos verdes ramos
azinheiras onde me sento
tenho saudades do exílio
sob as soturnas fragas
de ser parte do silêncio e da aragem
temo desejar o mundo
querer viajar sem ter bagagem

sábado, 23 de junho de 2007

conhecer o amor


carta que te escrevo em viagem, depois de ter chegado e retornado ao ponto de onde a noite me partiu. esta noite mergulhei dentro de ti, não houve sonhos, houve uma vigília profunda dentro dos teus olhos. e soube-te longo e demorado como os dias estivais. desde que te conhecei que te vou desconhecendo, de dia para dia te capto como se fosses o primeiro olhar da primeira vez e me provocasses o primeiro arrepio da primeira vez. e esta noite o corpo falou-me, nas voltas do colchão, o corpo esteve sempre em ti. foi como se o sono se sentasse aos pés da cama com vontade de vir mas indeciso quanto à forma de me abraçar decididamente. em vez dele veio o teu abraço, o hálito que me esmagava o corpo.
e então soube que tu serás sempre uma primeira vez, como as manhãs já velhas e gastas , sempre iguais, me cumprem sempre num nascimento novo. soube que virás sempre de maneira diferente pelas escadas, pela janela, o jardim, a porta a passagem secreta, a horta... surpreender-me-ás sempre como as manhãs, os olhos lavados e limpos de pecado, tudo novo e original em ti para inaugurarmos a beleza do mundo lado a lado. os olhos do amor são parcimoniosos, prendem-se no belo, perdem-se na beleza, prendem-se na roseira, nos espinhos, são eles próprios rosas domingueiras, são eles a beleza.
toda a noite se me fecharam os olhos do amor, sem as pálpebras me obedecerem. toda a noite te conheci o que de dia desconheço. toda a noite decantei as águas que agitamos, e assim te fui conhecendo no desconhecido que há em ti. toda noite a roseira nos prendeu as almas, nos picou as veias e bebeu de nós o violeta profundo da vontade. recordo pouco do que bebi de dentro de ti. provavelmente não esgotei a doçura do teu sangue para te beber devagarinho, talvez mais tarde. não, não quero saber-te todo, quero o mistério a metamorfose, o sangue novo.
esta manhã desponta cega e simples. não sei quem conheci nem como e só sei conhecer o amor que conheci na pele, o que me deste com a tua palavra distante, que nem sequer ouvi, mas rasou o meu sonho. conheço-te no que desconheço e amo em ti o desconhecido mistério das mãos com que me prendes, me sondas, me retalhas, nestas insónias que sobram de um mar de sonhos.
sabes que neste deserto urbano, a tua vinda compraz o silêncio e a nostalgia dos lugares de pouca permanência. está sol, vesti uma roupa fresca depois do banho, sinto-me bem com o mundo e com a vida que tenho. nada trocaria em mim, nem uma ruga sequer, nem esta estranha forma de amar, por outro corpo de mulher, outra forma de vida, pois que é nesta que sou mais e mais rica. desconfio, por esta noite de amor, que mais belo do que ter-te é a sensação de te ter tido, a raridade do momento, entre a dor da ausência, a dor no linho do lençol, floresceu este bocado de sonho, a face esmeralda da vida, como uma rosa rara no deserto, renasci, sinto-me viva.


Boa tarde, meu amor!

sexta-feira, 22 de junho de 2007

no limiar dos pássaros


Quem pisou o teu mar,
quem o manchou
como os lençóis de Pessanha
poluídos?

Quem rasgou o teu mar
e o deixou em soluços sustenidos?

Alma de gaivota, trainera naufragada,
não andes mais de madrugada
a mendigar ao mar a vida
que te leva a vela ao farol da eternidade

Deixa que o tempo encha as redes
de corais e madrepérolas
de búzios e raridades
Esse será o tempo dos girassóis
a lenha que arde quando a rede
te colher a neve em sal a saudade

Vive no limiar dos pássaros
aprende a voar todas as luas
sem asas rasa os espaços
a nadar entre os escolhos
cobre a nudez do corpo
em cada voo com o lume dos sargaços...
esta é a asa que nos risca o tempo
subliminar dos gestos...

ciprestes mudos

.
esta caminhada
é a das nuvens sem rumo
que pressurosas se apartem
da sua essência e sempre unas
quanto mais dissolutas
mais leves rasam as dunas
.
esta
é a fragmentação última
de um ser que se
reúne com uma multidão
de areia
na liberdade teimosa
de criar uma frágil flora
onde só seca sem cair
a melancolia da demora
.
aqui
passarão por vezes
as nuvens que nos nutrem
outras
os alísios que nos beijam
mas nos queimam
o riso aceso
.
aqui será a sesta do olhar
em Julho
aqui despiremos os ombros
à flor do estio
aqui as fundações do velho porto
de onde algumas vezes
nos partimos
.
aqui relva aqui rossio
aqui talvez dois ciprestes mudos
a rouquidão brusca
um cardo e o desejo
rompem areias
vozes do mundo
e nós calados dizemos tudo
como secretos espinhos
que só nós sabemos
serem veludo
« ~~.~~ »
Boa tarde!

segunda-feira, 11 de junho de 2007

faz-se tarde




.

a tarde é uma represa
tarda na tarde a água solta

a água da fonte fresca
e eu entro pela tarde como por um lago
busco a limpidez das águas,
navego-as com os sentidos
recuso o pego fundo e escuro
os juncos que se me colam ao corpo
e busco
um areal a meio da tarde
um braço de água azul e permeável
da cor do mundo
antes da árvore e da serpente
e do conhecimento
terem vindo
esventrar o paraíso arável
acerco-me do teu olhar
está escuro na iris deserta
sou eu a sonhar que bato à tua porta
abraço-te como Eva sem maçã
como o colo
que te guardo em cada manhã
abraço-te e deixo que a corrente da ternura
te una a mim,
numa lagoa simples
marginanda por freixos e chorões

fragas e montes, abelhas flores e peixes
o paraíso de antes
como numa paisagem de Miró
antes de o sol se pôr nos nossos corpos
e nos nossos corações...
E digo devagarinho, não vá a natureza
trazer-nos mais aluviões:
nunca se faz tarde para trazer à tarde
esta líquida sombra de saudade
onde se faz tarde o amor...

Por uns tempos, o Deserto fica assim, aberto a quem o atravessar, depois será fechado, como todos os lugares que se cumpriram. Agradeço a quem passou e se manifestou e aos outros também. Gostei de aqui ter estado.

Posso dizer que aqui fui feliz. Até sempre.

~~ . ~~

o canto das flores


.

decantarei as manhãs
com os meus dedos
passarei a sua terna substância
para a crista de todos os anseios
cada manhã decantada e cheia
polinizada de amor
será perfeita
cada manhã que venha
magra que seja e macambúzia
será uma manhã pluviosa
diluviana e pura
porque todas as coisas líquidas
se misturam no canto das flores
no choro dos lírios
no orvalho da pele
na simples certeza de respirar
a vida que vier
porque Ser é seguir o exemplo da natureza
que cadenciadamente se renova nos lábios
de cada estação

domingo, 10 de junho de 2007

tesouro






.

escrevo a tarde no meu corpo
sinto-me a sílaba solta
ou talvez o sopro
de um tempo profundo
leves rosas as que ouço
pedem silêncio
não sei sequer
calar o que não escondo
ternas brumas se levantam
e eu pressinto
que a tarde fende fundo
sobre a rocha absoluta de um tesouro
que acho e oculto

lugares do mundo



não, não há cidades que nos escondam
nem mar que de tão profundo
nos prenda nas tardes pelo mundo

sim, podemos fugir para longe das nações
e dos hipermercados de Domingo,
porque nossa é a flor da demora
no mais recôndito lugar da terra...

sim, só no eremitério da palavra
só nas suas frágeis asas temos
trégua

e assim, a geografia que nos reparte
é a estrada que nos conduz
ao fundo dos nossos corpos
como órfãos da alma à deriva
entre as farpas de dois mundos
tão incertos como a vida...

Chuva de Prata


.
águas infiltradas no meu corpo
a cidade cristalina lavada e limpa
as árvores cantantes de verdura
as tuas mãos presas nas minhas
como se fossem heras inseguras

e a chuva mergulha-nos no fundo
do tempo sem segundos nem minutos
que importância tem o tempo
se a chuva é a intemporal medida
de tudo que nos convoca para a vida ?

e como brilham as águas infiltradas
na memória de todas as cidades...
a chuva é um lapso de eternidade
tudo pára quando chove nesta margem
o teu corpo semeia-me, eu fico frágil

lembra o leito empapado a água extinta
as vidraças baças, as bocas famintas
o tecto da chuva cadente na nossa fala
enquanto nos deixamos adormecer
nesta cortina protectora a vida pára
e apenas o corpo se demora

meu amor, a chuva banha-nos
nas lágrimas puras da saudade
deixa-me florir assim pela palavra
todas as memórias que nos tardam
nesta manhã de chuva nos teus braços
todas as rosas do meu peito m' ardem

e eu digo: chuva de prata é chuva frágil
nunca se sabe quando nos lava a fala
com um estro puro de desejo
e depois nos foge numa nuvem
para a distância inalcansável
dos sonhos que deixámos na viagem
.
Bom Domingo a quem passar!

sábado, 9 de junho de 2007

tílias no parapeito


sabes, esta noite é como um fio de pedras soltas, apanho os bocados do silêncio e comovo-me com o seu som, a palavra assim riscada é magnética, sobrevoa-nos. é uma fita infinita de sons suspensos numa espécie de lugar de sombras, para onde se retira a poeira dos nossos dedos. acendi as estrelas no círculo da floresta, para que entres e te recolhas por dentro, a fogueira lavra devagar, sem pressa de se incinerar como os corpos que dia a dia alimentamos.
.
sabes, o quarto parece mais profundo desde que a noite se adiantou. meço-o com um elástico tenso nas suas pontas entre cada segundo. lugar de sombras e de espanto, o quarto prende a voz que o decorou em cada momento de encontro. uma carpete infinita enrola os nossos passos no mesmo lugar, andamos pela sala como peregrinos na via-láctea do coração, artéria a artéria, já abrimos todas para que tudo nos circulasse de oxigénio novo. agora o quarto acoita os astros e nós deixámos tanta estrela por prevenir...
.
escuta, as sombras das tílias pousam no parapeito e abanam ao ligeiro vento da despedida. não temas, o quarto permanece até ao fim do olhar, será assim que nos despediremos da branca luz da memória, num quarto com o cheiro das tílias pousadas no parapeito da vida.
.
ouve o que te digo, o quarto tem as paredes bastantes para todas as projecções de nós e do mundo. cabe tudo na verdade que nos ocultamos. não temas, de cada vez que nos refugiarmos no quarto, não ouviremos apenas os sons dos nossos passos. a pele reacender-se-á germinada e verde nalgum musgo antigo, que julgávamos seco.
.
mordemos a caliça, ouvimos as arestas imperfeitas, arredondam-se consoantes tribais, nos teus ouvidos, a noite, a dissonância, o nó de seda em volta da garganta, eu sei, eu sei podemos despertar numa folha cheia de sons quânticos, o nosso leito âmago, gostava de ser o teu rio e que me navegasses pelo fundo nas ondas do pranto.
.
escuta, só falta isto, liberta o vento que nos prende os cabelos, as horas esquecidas despenteadas, lívidas como cadáveres, deixemos aberto o quarto de heras trepadeiras, teias renitentes, no algodão que nos envolve os corpos, deixa as faias falarem por nós quando chegar o momento e o quarto for de algodão perfeito na luz branca da memória que, suspensa, lembra tílias a acenar no parapeito... esta noite é a manhã perfeita dos nossos sinuosos desejos, alva e limpa, infinitamente veloz e luminosa como a espera do fim do tempo...

manhã possível


.
colho na minha mão a manhã possível
o cheiro do café fresco lembra caravelas
lugares distantes
esplanadas projectadas ao mar em frente

arregimento à minha volta a vida simples
jardins secretos da minha infância
um sol ardente preso na garganta
como se a voz me ardesse de
tanta neve em esperança

espanto as teias os teares desalojados
nestas longas tranças de centeio
deuses desenham meus velhos fados
ignoro-os, os deuses moram
só nos lugares desabitados

abro as janelas às nuvens viandantes
sorrio aos prédios em frente
tudo é possível na imensidão deste instante

o meu mundo está igual
nada mudou no meu presente
sou a palavra que invento e o amor que
a sustenta
as manhãs primordiais apenas nos concertam
o olhar que se perdeu nalgum deserto,
nalgum paraíso distante
inalcansável luz que a noite acresce
quando a sépia uma margarida desfalece

ah, se não fossem as manhãs
como poderia eu renascer na branca veste
vestir-me de nuvem ou de flor celeste
renovar as asas rubras rente à sede
reacender a água da nescente e beber
beber o sonho acre e doce docemente
e soltar a vária ventania de viver?

só nas manhãs me amanheço
e trago ao lume do dia
o simples e terno acontecer
da simplicidade em flor
sal e seiva e sol o selo do amor
na pele - a semântica do Ser.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Cabelo ao Vento



desemboquei neste poema à beira-mar
navegando nas palavras naufragadas
e uma onda inquieta no horizonte
rouba o teu corpo ao vazio da madrugada
e há um silêncio de talhas entornadas
rosas adornando esta massa solta ao vento
os cabelos que afagavas ternamente
estes búzios encrespando os seios sedentos
este intimismo e a boca alucinada de desejo

sinto o perfume do meu cabelo nos teus dedos
o roçar dos teus dedos nos meus lábios secos
a vela, o mastro e o teu velejar sedento
quando amar-te era deixar que te perdesses
no aroma fresco do meu cabelo ao vento

mas o mar conta naufrágios e segredos
e o nosso romance, amor, acabou cedo...

já o farol incendeia estes cabelos revoltados
como se um magma ardente os tivesse aflorado
e este poema fosse a crina de um cavalo
roçando o linho do meu corpo afogueado

cortarei meus cabelos para que o vento os leve
talvez fuga, talvez rodopiar não chegue
para espalhar o seu perfume nos teus dedos
como barca atravessando memórias de mar
para te dizer, amor: para quem ama o impossível
o regresso nunca entardece...
Por isso hoje acendi esta fogueira
no areal dos meus versos ...
e o meu corpo é cetim perverso que a noite adensa
a nossa ceia esfria, o desejo à minha boca aflora
e a ausência, meu amor, rasga com dentes de fera

Corpo, ondas soltas na maresia do desejo.
Ausência, a morte atenta que me embranquece o olhar...
Prazer, soltar ao vento o corpo e os cabelos
e espalhar em ti o meu perfume de mulher...



de uma minha heterónima...
(apeteceu-me...)

quinta-feira, 7 de junho de 2007

uvas maceradas


manhãs de rosas raras
clareiras abastadas
círculos quebrados
em redor das palavras

Junho veio em clamorosas vagas
caídas a prumo na espera do meio dia
são vagas cegas que as areias
logo tragam

manhãs de rubras faces
meu corpo arinto de uvas maceradas
a razão íntima de todas as partidas
é a esperança de todas as chegadas
.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

esconjuro



é na polpa do seio
e tu não sabes
que a sede morde
a mão que precede
a romã dos tempos

é a rosa das neves
e a remota
antiga sede
tálamo e firmamento
e tu não sabes
como és esconjuro
e és desejo

caule e raiz
ideia de ígnea dor
queima por dentro
por fora
...é amor
.

muralha



a rede veio à tona engurgitada de palavras vivas e viventes vorazmente agitadas. renascem os peixes na boca dourada da sua morte. vivemos assim sem respirar só por uns dias e de repente há um sobressalto e uma maré maior repõe as pedras todas na muralha arruinada. nunca se cumpre o desenho original, nem as seteiras se alinham nos mesmos lugares, mas a muralha reconstruída pode ficar mais forte, ou mais frágil, consoante a queiramos repetir como estava, ou totalmente outra mas de raízes mergulhadas mais longe nas areias frágeis...

terça-feira, 5 de junho de 2007

Deste-me flores?

Obrigada pelas flores, como são belas!
Deste-me flores e eu fico com elas.
Mas que me diz o mutismo das rosas e das malvas?
As flores são inocentes seres que só nos falam
no murmúrio dos lábios que sabem amá-las
e as impreganam de recados d'alma.
Estas são belas e impávidas. De ti só a luz de uma
mão acabrunhada.
E todas as flores do mundo à minha porta
não serão Maio bastante
para replantar a vida que eu respirava
e me roçava, como um ténue beijo
de amante... a vida que dantes usava na pele
e era forte e me riscava o corpo
como o diamante;
nem a crença impoluta
como a pétala da petúnia sob o orvalho
a crença num amor obreiro celeste
favos secretos de secretos olhos
na sebe segura das árvores do bosque,
o encanto certo da bruma e outras maravilhas
do estreito universo
só nosso - não - não há flores que possam
replantar a árvore deposta o abrigo a nu a areia dócil
na deserta costa
do meu mundo de laranjais e
mágicas hortas...
Obrigada pelas flores, como são belas!
Deste-me flores e eu fico com elas.
~~.~~

sábado, 2 de junho de 2007

reverberações


I

a noite vestiu a tua voz e tu vieste
toda a noite a flor florida da tua verve a tua voz a caber na noite
a ocupar todo o espaço da noite
a tua voz rasa na atenção do meu sono
a tua voz toda a noite me falou de cais partidos
e de pontes novas sobre futuros rios e risos
a noite toda a tua voz me sombreou
ao de leve os cílios num sorriso

II

a noite toda a tua boca junto à pele
delírio de lábios em lírio trouxe
as razões breves de tão fundo amor
a descer a rampa da noite em tumultuosos passos
ao virar da folha a noite em dardos
quem diria que o amor nos desce de rompante
entre algodão e linho e cresce tanto
e o amor vulnerável despe o seu suor
e lambe o lume que for bastante
até rasgar o silêncio e a dor

III

quem diria que a noite é em declive
a tua boca secreta hoje falou-me
das árvores plantadas a aguardar estrume
do crescimentos soberbo das raízes
profundas raízes sem nódulos à vista
talvez jazam junto aos mortos
na estratoesfera vigilante do teu mundo
e não se mostrem nos seus desígnios de talvez fruto
mistérios do teu corpo
andas pela noite como se mordesses o sono
para algemar na escuridão o que em nós mora
sem nada nos morrer antes que a claridade venha

IV

quem diria tanta lenha e tanto arbusto
nos dedos e na voz que é lume
tudo que me dizes tem um sabor álgido
mas não dói - purifica e une
tudo que me dizes tem a candura da rosa branca
são cogitações puras e brandas
numa frágil auréola de esperança

V

e como eu bebo esse orvalho que me cantas
como a tua voz me subiu hoje a espera
e rasou na pele o cio da Primavera
a folhagem inesperada fala devagar
é ouvi-la nos pinhais, tantos vagares
que cala - tantas pressas que sustenta
ah, meu amor toda esta noite o banho lustral
da tua voz em volta da cintura
e do meu seio, voz e boca e pele
tudo o mesmo admirável fértil mistério
o pão e o mel


sexta-feira, 1 de junho de 2007

serenata do corpo


.
sinto a serenata do corpo
em lua alta
a lava acorre à rocha
e funde a rocha em água

percorres-me entre a pele
enquanto eu durmo
e depois é como se
tudo respirasse no sonho

harpejos na tua tensa fala
arrepio que escondo
é hora de tirar o lençol
dos ombros
e receber a prumo
a serenata do teu corpo
deserto maduro onde
me afundo

Hoje é de dia de ser criança


... e eu vou dedicar-me inteiramente às minhas flores
e às que, fazendo parte doutros jardins, são minhas também...
Até logo!
Hoje o dia foi de evasão, frente ao Tejo, a ver o Bugio na sua sólida solidão, a sua vulnerabilidade, o triste marasmo do céu nebulado, a barra sul e os seus baixios, as gaivotas lestas nos rochedos, o sol a piscar, e o mar em rugidos de Adamastor nos bancos do cais... Dia de ver os barcos de ir e os de voltar, os veleiros na marina como eu, à espera de partir e deu-me então uma vontade marinheira de zarpar nas caravelas da pimenta, para outras terras sem regresso à vista a esta vida tão cinzenta. Ver terras distantes, ilhas aromáticas, exóticas flores, floridos recantos, gentes, marcas, artefactos, magia e encanto. Depois lembrei-me das raízes, as pequenas raízes que me prendem e pareceu-me que a melhor forma de partir com algum rumo era ficar onde vou cultivando o futuro e o sonho... e à cautela fugi do mar, o mar quase sereia, o mar mareante, a fresca redenção que renova e nutre o sangue. O mar. As caravelas da pimenta... Voltei à correcção dos testes e a realidade enlaçou-me de rompante, numa aparição da minha estreiteza e isolamento, uma espécie de farol do Bugio, presa ao presente...
Ah, ser eu e ser outra no mesmo instante...